09/07/2003
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina
Registo de texto integral do Panorama n. zero
Suplemento do Semanário Miradouro n. 1408 de Sexta-feira,
6 de Junho de 2003
Registo efectuado por: Rui Semblano (Redactor)
actualizado a 09/Jul/2003
Índice Zero - Junho 2003
Um Panorama da Palestina
Página 1
Editoriais
Apelo à ONU
Para conhecimento do Senhor Presidente da República Portuguesa
Urbano Tavares Rodrigues
Óscar Lopes
José da Cruz Santos
Assinada por três nomes ligados às Letras e ao Ensino, esta é uma chamada de despertar para a dura realidade que não nos deve escapar.
Pensamento
Página 2
Boassas
Uma aldeia de fronteira
no Garb al-Andalus
Cinco Séculos de esquecimento
Manuel da Cerveira Pinto
Reflexões sobre uma herança enjeitada por Portugal ao ponto de obras fundamentais para a sua compreensão, que estão no nosso acervo bibliográfico, permanecerem por traduzir e de os circuitos culturais a ela relativos, que passam por este País, serem promovidos pelos espanhóis (e muito bem!)
Página 3
Palestina mon amour
Memória de um esquecimento
Rui Semblano
Ensaio-poema, inspirado no filme de Alain Resnais sobre uma das mais belas obras de Margerite Duras, incluído no livro “War in the ruins of democracy”, sobre a situação despoletada pela invasão do Iraque em Março de 2003
Página 4
Nesta terra
há coisas que merecem viver...
Mahmoud Darwich
Nascido em 1942 na Palestina, é considerado um dos grandes poetas árabes contemporâneos e este é um dos seus poemas, a que se juntam uma breve biografia/bibliografia e uma notícia saída no “El Pais”.
Poema ilustrado por um desenho de António Péssimo
Ficha Técnica
Suplemento do Semanário Miradouro n. 1408 de Sexta-feira,
6 de Junho de 2003
Registo efectuado por: Rui Semblano (Redactor)
actualizado a 09/Jul/2003
Índice Zero - Junho 2003
Um Panorama da Palestina
Página 1
Editoriais
Apelo à ONU
Para conhecimento do Senhor Presidente da República Portuguesa
Urbano Tavares Rodrigues
Óscar Lopes
José da Cruz Santos
Assinada por três nomes ligados às Letras e ao Ensino, esta é uma chamada de despertar para a dura realidade que não nos deve escapar.
Pensamento
Página 2
Boassas
Uma aldeia de fronteira
no Garb al-Andalus
Cinco Séculos de esquecimento
Manuel da Cerveira Pinto
Reflexões sobre uma herança enjeitada por Portugal ao ponto de obras fundamentais para a sua compreensão, que estão no nosso acervo bibliográfico, permanecerem por traduzir e de os circuitos culturais a ela relativos, que passam por este País, serem promovidos pelos espanhóis (e muito bem!)
Página 3
Palestina mon amour
Memória de um esquecimento
Rui Semblano
Ensaio-poema, inspirado no filme de Alain Resnais sobre uma das mais belas obras de Margerite Duras, incluído no livro “War in the ruins of democracy”, sobre a situação despoletada pela invasão do Iraque em Março de 2003
Página 4
Nesta terra
há coisas que merecem viver...
Mahmoud Darwich
Nascido em 1942 na Palestina, é considerado um dos grandes poetas árabes contemporâneos e este é um dos seus poemas, a que se juntam uma breve biografia/bibliografia e uma notícia saída no “El Pais”.
Poema ilustrado por um desenho de António Péssimo
Ficha Técnica
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Página 1
Apelo à Organização das Nações Unidas
(para conhecimento do Senhor Presidente da República Portuguesa)
É um insulto ao espírito legalista e humanitário das Nações Unidas e à consciência de todo o mundo democrata o que se está passando com Yasser Arafat, presidente da Palestina, praticamente preso em Ramallah, no quartel general, ameaçado e vilipendiado pelas tropas invasoras e ocupantes de Israel, a mando de Ariel Sharon, responsável pelos massacres de Sabra, Chatila e Jenin, e pela provocação da Esplanada das Mesquitas, no momento em que os olhares do mundo se concentram no Iraque em ruínas, no saque de Bagdad e na instauração de uma espécie de protectorado americano no país do petróleo. Dir-se-ia que a violência sem freio se desencadeou para lá dos limites mínimos de respeito pela dignidade das nações e dos cidadãos. Para mais, Yasser Arafat é um chefe de Estado, que não está sendo considerado como tal nesta abusiva política de facto consumado.
É para estes atropelos chocantes que chamamos a atenção da Organização das Nações Unidas, entidade suprema na resolução de problemas de tão grave natureza.
Para que Israel seja finalmente digno da simpatia e solidariedade que inspirou no passado o sofrimento do povo judeu, há que travar rapidamente a onda de predação e morte na Palestina, os chamados assassínios selectivos, a infâmia dos colonatos e os atentados como este à liberdade e à dignidade de um chefe político, Yasser Arafat, o rosto da sua pátria, para que seja finalmente possível uma futura convivência pacífica dos estados de Israel e da Palestina. •
Urbano Tavares Rodrigues,
professor universitário e escritor
Óscar Lopes,
professor universitário e escritor
José da Cruz Santos,
editor
(Os três primeiros signatários deste Apelo)
Nota da Redacção:
Se desejar assinar este Apelo, pode fazê-lo para a Redacção do Panorama, por escrito ou via e-mail, indicando nome, morada e profissão.
SUBSCREVA AQUI
(para conhecimento do Senhor Presidente da República Portuguesa)
É um insulto ao espírito legalista e humanitário das Nações Unidas e à consciência de todo o mundo democrata o que se está passando com Yasser Arafat, presidente da Palestina, praticamente preso em Ramallah, no quartel general, ameaçado e vilipendiado pelas tropas invasoras e ocupantes de Israel, a mando de Ariel Sharon, responsável pelos massacres de Sabra, Chatila e Jenin, e pela provocação da Esplanada das Mesquitas, no momento em que os olhares do mundo se concentram no Iraque em ruínas, no saque de Bagdad e na instauração de uma espécie de protectorado americano no país do petróleo. Dir-se-ia que a violência sem freio se desencadeou para lá dos limites mínimos de respeito pela dignidade das nações e dos cidadãos. Para mais, Yasser Arafat é um chefe de Estado, que não está sendo considerado como tal nesta abusiva política de facto consumado.
É para estes atropelos chocantes que chamamos a atenção da Organização das Nações Unidas, entidade suprema na resolução de problemas de tão grave natureza.
Para que Israel seja finalmente digno da simpatia e solidariedade que inspirou no passado o sofrimento do povo judeu, há que travar rapidamente a onda de predação e morte na Palestina, os chamados assassínios selectivos, a infâmia dos colonatos e os atentados como este à liberdade e à dignidade de um chefe político, Yasser Arafat, o rosto da sua pátria, para que seja finalmente possível uma futura convivência pacífica dos estados de Israel e da Palestina. •
Urbano Tavares Rodrigues,
professor universitário e escritor
Óscar Lopes,
professor universitário e escritor
José da Cruz Santos,
editor
(Os três primeiros signatários deste Apelo)
Nota da Redacção:
Se desejar assinar este Apelo, pode fazê-lo para a Redacção do Panorama, por escrito ou via e-mail, indicando nome, morada e profissão.
SUBSCREVA AQUI
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Editoriais
Miradouro em suplemento literário
Há bastante tempo que se tem andado a arquitectar a saída de um suplemento literário do jornal Miradouro. Desafio de uns dois ou três amantes das letras e das artes, que, todavia, tem tardado, por motivos vários, entre os quais não será de modo algum despiciendo o problema dos dinheiros (para mais agora, se andamos em recessão técnica nacional) a corporizar-se.
Há já uns bons pares de anos que o jornal Miradouro teve, mensalmente, se não erramos (e estamos a escrever sem outra referência que não seja a memória...) uma página literária. Ou sei lá se só um arremedo dela...
Voltaremos, agora que, como disse há uns tempos atrás ao Senhor Governador Civil de Viseu, em conversa amiga, o jornal está numa fase "perigosa e periclitante" a ensaiar, com outros devotos da cultura, a execução de um suplemento literário (mais valioso e maior que a simples oitava página mensal...) que esperamos, tal como o jornal, permaneça na sua edição trimestral... A tentativa aqui fica. Que as gentes, os assinantes, os leitores e quem, governamentalmente, tem certas obrigações culturais, o apreciem e amparem.
Louvamos Deus, entregando-nos ao destino. Ao futuro. •
M. Cerveira Pinto
Director
Um outro panorama
Nasce com este número do jornal Miradouro o PANORAMA, naquela que é, ainda, uma edição experimental. O suplemento PANORAMA, pretende reforçar e ampliar a tradição e vocação artística, cultural e literária do Miradouro, agora que este perfaz mais de quatro décadas de existência.
Parece-nos que será uma prenda bela e apropriada para um semanário que sempre se caracterizou por uma certa vertente literária, artística e cultural...
Tal como o seu subtítulo indica deverá ser pois “um miradouro das artes e das letras”, que privilegiando o panorama regional, pretende no entanto ir mais além, mostrando realidades nacionais e mesmo ibéricas.
A feliz ideia de um suplemento artístico/literário do Miradouro, formulada pelo editor portuense José da Cruz Santos, vinha por nós sendo acarinhada há já vários anos, mas que uma multiplicidade de factores ia constantemente fazendo adiar. Embora o panorama seja um pouco enevoado, neste momento, para a imprensa regional, que se vê na eminência de perder os parcos apoios do poder central, o Miradouro, mantendo a sua tradição de lutador e resistente, ao invés de esmorecer, rejuvenesce, recusando acreditar que um jornal que sobreviveu ao fascismo e à censura possa soçobrar com a democracia...
O PANORAMA, deverá numa primeira fase ser sazonal, para posteriormente alcançar uma periodicidade mensal, dependendo da sua aceitação e do aparecimento de colaboradores que o permitam. Cada número deverá ter um tema, que poderá ser mais ou menos desenvolvido.
Os tempos actuais e a necessidade de fazer ouvir, cada vez mais, a voz dos fracos e oprimidos, levou-nos a escolher como tema para este número de ensaio a PALESTINA. A este povo mártir, à sua coragem e à sua luta é pois dedicado este número.
O Miradouro alarga assim os seus horizontes dando a ver um panorama das artes e das letras que esperamos seja do agrado dos seus leitores. •
MCP
Editor
Há bastante tempo que se tem andado a arquitectar a saída de um suplemento literário do jornal Miradouro. Desafio de uns dois ou três amantes das letras e das artes, que, todavia, tem tardado, por motivos vários, entre os quais não será de modo algum despiciendo o problema dos dinheiros (para mais agora, se andamos em recessão técnica nacional) a corporizar-se.
Há já uns bons pares de anos que o jornal Miradouro teve, mensalmente, se não erramos (e estamos a escrever sem outra referência que não seja a memória...) uma página literária. Ou sei lá se só um arremedo dela...
Voltaremos, agora que, como disse há uns tempos atrás ao Senhor Governador Civil de Viseu, em conversa amiga, o jornal está numa fase "perigosa e periclitante" a ensaiar, com outros devotos da cultura, a execução de um suplemento literário (mais valioso e maior que a simples oitava página mensal...) que esperamos, tal como o jornal, permaneça na sua edição trimestral... A tentativa aqui fica. Que as gentes, os assinantes, os leitores e quem, governamentalmente, tem certas obrigações culturais, o apreciem e amparem.
Louvamos Deus, entregando-nos ao destino. Ao futuro. •
M. Cerveira Pinto
Director
Um outro panorama
Nasce com este número do jornal Miradouro o PANORAMA, naquela que é, ainda, uma edição experimental. O suplemento PANORAMA, pretende reforçar e ampliar a tradição e vocação artística, cultural e literária do Miradouro, agora que este perfaz mais de quatro décadas de existência.
Parece-nos que será uma prenda bela e apropriada para um semanário que sempre se caracterizou por uma certa vertente literária, artística e cultural...
Tal como o seu subtítulo indica deverá ser pois “um miradouro das artes e das letras”, que privilegiando o panorama regional, pretende no entanto ir mais além, mostrando realidades nacionais e mesmo ibéricas.
A feliz ideia de um suplemento artístico/literário do Miradouro, formulada pelo editor portuense José da Cruz Santos, vinha por nós sendo acarinhada há já vários anos, mas que uma multiplicidade de factores ia constantemente fazendo adiar. Embora o panorama seja um pouco enevoado, neste momento, para a imprensa regional, que se vê na eminência de perder os parcos apoios do poder central, o Miradouro, mantendo a sua tradição de lutador e resistente, ao invés de esmorecer, rejuvenesce, recusando acreditar que um jornal que sobreviveu ao fascismo e à censura possa soçobrar com a democracia...
O PANORAMA, deverá numa primeira fase ser sazonal, para posteriormente alcançar uma periodicidade mensal, dependendo da sua aceitação e do aparecimento de colaboradores que o permitam. Cada número deverá ter um tema, que poderá ser mais ou menos desenvolvido.
Os tempos actuais e a necessidade de fazer ouvir, cada vez mais, a voz dos fracos e oprimidos, levou-nos a escolher como tema para este número de ensaio a PALESTINA. A este povo mártir, à sua coragem e à sua luta é pois dedicado este número.
O Miradouro alarga assim os seus horizontes dando a ver um panorama das artes e das letras que esperamos seja do agrado dos seus leitores. •
MCP
Editor
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Página 1
Pensamento
As casas estão dispostas em torno de um pátio com laranjeiras e uma fonte em que sussurra a água. Maravilhado, recordo a máxima que guiara os construtores da Alhambra: "Depois do silêncio, o correr da água é a música mais bela que existe".
Lido em "El Pais"
As casas estão dispostas em torno de um pátio com laranjeiras e uma fonte em que sussurra a água. Maravilhado, recordo a máxima que guiara os construtores da Alhambra: "Depois do silêncio, o correr da água é a música mais bela que existe".
Lido em "El Pais"
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Página 2
Boassas
Uma aldeia de fronteira no Garb al-Andalus
Cinco séculos de esquecimento
por: Manuel da Cerveira Pinto
A indiferença votada ao período histórico a que respeita o domínio árabe da Península Ibérica constitui hoje, sobretudo em Portugal, uma falha cultural enorme, que se arrasta penosamente desde há muitos séculos e que, lamentavelmente, teima em permanecer.
Este estigma subsiste graças, sobretudo, a uma intolerância cultural e a um etnocentrismo primário, consequentemente fomentados ao longo dos tempos, que atropelam e deformam todo o necessário e desejável rigor científico da História. Esta foi sendo moldada através dos tempos ao sabor de nacionalismos bacocos, de preconceitos xenófobos, racistas e religiosos, bem como de critérios mais que duvidosos, cujo paradigma culmina no período fascista, em que o regime procurava uma definição de “raça e de cultura” em que pura e simplesmente não cabiam as influências orientais ou africanas, vistas e tidas como inferiores e que, por isso, eliminava toda a herança árabe.
Mesmo hoje, passadas quase três décadas sobre a queda do regime fascista, perdura a ideia generalizada de que os árabes se limitaram a invadir a península, instalaram-se sobretudo no sul e pouco ou nada deixaram da sua cultura. Pelo menos nada que se compare em Portugal ás cidades andaluzas de Córdova, Sevilha ou Granada, tão habituados que estamos, pelas nossas deficiências civilizacionais, a julgar todas as manifestações culturais apenas pelos seus aspectos materiais mais imediatos, sobretudo aqueles visualmente mais exuberantes.
Numerosos exemplos poderão ser citados. Desde os próprios manuais e livros escolares, que levianamente, do período romano, profusamente desenvolvido e ilustrado, “saltam” para o período românico/cristão, copiando uma realidade centro-europeia que nada tem que ver com o que então se passava na Península Ibérica. Ou até mesmo nos próprios estudos universitários, onde apenas se estudam as manifestações “moçárabes” e mesmo assim muito pela rama. Mesmo a própria designação “moçárabe” constitui uma forma clara de omitir ou disfarçar a evidência da presença muçulmana, contrastando com a forma como, por comparação, se designam os romanos por esse nome e não por Ibero-romanos ou outra designação similar.
Um dos mais recentes indícios desta omissão ou discriminação, acontece na recentemente publicada Monografia de Cinfães, onde o período árabe é pura e simplesmente banido, ou melhor, antes assim fosse, porque o que se menciona desta época é apenas, ao bom estilo salazarista “as razias e saques que os muçulmanos faziam”.
Ou seja, como se não bastasse uma omissão histórica de “apenas” cinco séculos, fazem-se afirmações deste calibre, como se fazer “saques e razias” fosse um predicado apenas dos muçulmanos!... Ou seja, dá-se a ideia de que durante quinhentos anos de história Ibérica, a única coisa que os muçulmanos fizeram foi “saques e razias”... Tanta ignorância e preconceito chega a ser ofensiva. Curiosamente não se mencionam os “saques e razias”, a escravatura, a exploração e os massacres perpetrados pelos romanos, pelos visigodos, pelos túrdulos, ou mesmo pelos portugueses durante os “descobrimentos”, ou ainda os actos canibais praticados pelos soldados cristãos ocidentais durante as cruzadas...
Será que alguma vez estes “historiadores” pensaram como é que se terão sentido, por exemplo, os habitantes muçulmanos e mesmo os cristãos e judeus de Lisboa, após vários séculos de convivência e cultura islâmica, por passarem a ter, de um momento para o outro, a obedecer às leis, usos e costumes cristãos. Por outro lado não consta também que a tomada de Lisboa, bem como a de Évora, Santarém, Silves, Coimbra, Lamego, etc., tenham sido perpetradas pelos cristãos sem “saque nem razia”, bem pelo contrário...
Não adianta escamotear a questão, separar os “bons” para um lado e os “maus” para outro. Sabemos hoje perfeitamente que o “saque” era uma prática comum aceite instituída e mesmo forma de pagamento das próprias tropas, assim como também era comum a “razia e a escravatura”.
A própria história registou estas usanças. Reparemos mesmo o que, por exemplo, refere a este propósito Alexandre Herculano:
(...) ”Ordonho aproveitou as forças que ajuntára para fazer uma entrada nas terras dos infiéis. Passou o Douro; desceu pelo território mussulmano, que hoje chamamos Beira e Extremadura até a foz do Tejo; tomou e saqueou Lisboa, e voltou a Leão rico de despojos e captivos.” (1) Ou ainda, acerca de actos bárbaros, como este que é relatado sobre o cerco de Lisboa:
(...) Com a desesperação, começaram bandos de povo faminto a sahirem fóra dos muros, e a irem entregar-se aos christãos, renegando da própria crença para salvarem as vidas. Mas de nada valia a muitos delles esta resolução extrema: ou o fanatismo religioso, ou antes a feroz esperança de incutir terror nos sitiados com um espectaculo d’estranha cruesa, fazia com que, decepadas primeiro as mãos daqueles malaventurados, fossem repellidos de novo para os muros.” (2)
Obviamente muito haverá a dizer sobre o período árabe do território que hoje é Portugal, imenso sobre a Península Ibérica e também algo, sem dúvida, sobre o que é hoje o território cinfanense. No entanto a tarefa não se afigura fácil. A todos estes preconceitos, fobias, etnocentrismos e culturalismos aliam-se perigosamente a indiferença e ignorância, no que perfazem uma barreira, senão intransponível, pelo menos muito sólida e assim, só muito a custo se vão lentamente abrindo as brechas que permitirão aceder a todas essas riquezas ainda escondidas.
Os primeiros passos, contudo, começam finalmente agora a ser dados neste sentido, por pessoas como o arqueólogo beirão Cláudio Torres, cujo trabalho notável levado a cabo em Mértola, constituirá sem dúvida exemplo a seguir nos tempos próximos. Mas também o do arabista, poeta e escritor Adalberto Alves que tem aprofundado o estudo das letras e sobretudo dos poetas árabes da época. O seu labor tem revelado à cultura portuguesa uma imensa riqueza escondida a qual, essa sim, constituirá, o verdadeiro Tesouro da Moura Encantada de que fala o povo nas suas lendas e histórias.
Em Cinfães, embora tudo, literalmente, esteja ainda por fazer neste campo, muito há a estudar e a descobrir. As evidências são, porém, imensas.
À medida que fui estudando as origens da minha aldeia natal, para a elaboração do livro BOASSAS - UMA ALDEIA COM HISTÓRIA, fui-me deparando com uma multiplicidade de vestígios que apontavam para o período árabe. Fosse em histórias e lendas que ouvi contar, fosse na presença musical ainda sentida no cancioneiro, fosse na própria linguagem, num painel de azulejos, numa data, num vestígio de um antigo lagar, na improvável profusão de oliveiras, na sugestiva toponímia, etc.
O trabalho que agora surge mais não é que o resultado da junção de todos esses elementos e a sua evidente conclusão. O etnocentrismo continua no entanto a marcar pontos e a deturpar a visão objectiva e crítica da história, fomentando desta forma o desconhecimento, a ignorância, o desinteresse e a indiferença sobre um dos períodos mais interessantes e marcantes da história da Península Ibérica e que iria ter repercussões, não só em Portugal e Espanha, como até a nível mundial na saga dos denominados “Descobrimentos”... De facto, não será necessário um estudo muito aprofundado para esclarecer porque motivo os “descobrimentos” são perpetrados pelos países Ibéricos e não por outros países europeus.
Na realidade o conhecimento científico, havia sido aportado ao extremo oeste do continente europeu pelos árabes que haviam absorvido e desenvolvido os fundamentos da cultura greco-romana. Só se fossemos cegos não veríamos a importância fenomenal que, por exemplo, aportou para o conhecimento, para o desenvolvimento científico, tecnológico, filosófico, artístico e cultural a invenção dos algarismos e a descoberta do “zero”.
De facto o espírito do Renascimento começa na Península Ibérica e não em Itália como até hoje nos querem fazer crer.
No entanto, após oitocentos anos os preconceitos, as diferenças culturais, sociais e sobretudo religiosas, ainda não foram completamente ultrapassadas. Os primeiros passos para esta desmistificação são dados, provavelmente, por Alexandre Herculano, na sua História de Portugal, vendo no domínio árabe da península não apenas o factor guerreiro, conquistador e usurpador (?), mas também os aspectos sociais, políticos, de organização do territórios e sobretudo o fantástico impulso sociocultural aportado pela civilização árabe.
Tal como afirmaria mais tarde o grande poeta Fernando Pessoa, mais que lusitanos ou celtas o povo português é essencialmente o resultado de duas civilizações - a romana e a árabe.
No entanto, mesmo Alexandre Herculano, embora se tenha conseguido libertar, como ele próprio afirma, da sua nacionalidade, com vista a obter uma maior isenção, independência e rigor histórico-científico, não se consegue libertar, porém, da sua religião e acaba por tecer, também ele, comentários etnocentristas e mistificadores, desprovidos de qualquer rigor histórico ou científico, como quando afirma por exemplo que o facto de a península ibérica não conseguir encontrar a paz, se deve ao facto de esta ser dominada pela religião muçulmana e não pela cristã. No entanto há que ter em conta que estávamos em meados do século XIX...
Os poetas têm, sem dúvida, uma maior clarividência, por isso e porque penso que nada enalteceria melhor a cultura árabe que as palavras de um grande poeta, faço minhas as palavras de Fernando Pessoa:
“...nós, Ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações - a romana e a árabe. Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos Árabes nossos maiores. Expiemos o crime que cometemos ao expulsarmos da Península os Árabes que nos civilizaram.” (3)
Porque a esperança de um mundo melhor reside sem dúvida numa melhor relação entre os povos, por um entendimento e respeito mútuo entre as várias culturas e religiões, embora parco, com toda a humildade, espero possa ser este o meu contributo. •
(1) Herculano, A. - História de Portugal, pp. 148
(2) Herculano, A. - História de Portugal, pp. 377
(3) Pessoa, F. - Da Ibéria e do Iberismo, in Alves, A. - A herança árabe em Portugal, pp. 25
Uma aldeia de fronteira no Garb al-Andalus
Cinco séculos de esquecimento
por: Manuel da Cerveira Pinto
A indiferença votada ao período histórico a que respeita o domínio árabe da Península Ibérica constitui hoje, sobretudo em Portugal, uma falha cultural enorme, que se arrasta penosamente desde há muitos séculos e que, lamentavelmente, teima em permanecer.
Este estigma subsiste graças, sobretudo, a uma intolerância cultural e a um etnocentrismo primário, consequentemente fomentados ao longo dos tempos, que atropelam e deformam todo o necessário e desejável rigor científico da História. Esta foi sendo moldada através dos tempos ao sabor de nacionalismos bacocos, de preconceitos xenófobos, racistas e religiosos, bem como de critérios mais que duvidosos, cujo paradigma culmina no período fascista, em que o regime procurava uma definição de “raça e de cultura” em que pura e simplesmente não cabiam as influências orientais ou africanas, vistas e tidas como inferiores e que, por isso, eliminava toda a herança árabe.
Mesmo hoje, passadas quase três décadas sobre a queda do regime fascista, perdura a ideia generalizada de que os árabes se limitaram a invadir a península, instalaram-se sobretudo no sul e pouco ou nada deixaram da sua cultura. Pelo menos nada que se compare em Portugal ás cidades andaluzas de Córdova, Sevilha ou Granada, tão habituados que estamos, pelas nossas deficiências civilizacionais, a julgar todas as manifestações culturais apenas pelos seus aspectos materiais mais imediatos, sobretudo aqueles visualmente mais exuberantes.
Numerosos exemplos poderão ser citados. Desde os próprios manuais e livros escolares, que levianamente, do período romano, profusamente desenvolvido e ilustrado, “saltam” para o período românico/cristão, copiando uma realidade centro-europeia que nada tem que ver com o que então se passava na Península Ibérica. Ou até mesmo nos próprios estudos universitários, onde apenas se estudam as manifestações “moçárabes” e mesmo assim muito pela rama. Mesmo a própria designação “moçárabe” constitui uma forma clara de omitir ou disfarçar a evidência da presença muçulmana, contrastando com a forma como, por comparação, se designam os romanos por esse nome e não por Ibero-romanos ou outra designação similar.
Um dos mais recentes indícios desta omissão ou discriminação, acontece na recentemente publicada Monografia de Cinfães, onde o período árabe é pura e simplesmente banido, ou melhor, antes assim fosse, porque o que se menciona desta época é apenas, ao bom estilo salazarista “as razias e saques que os muçulmanos faziam”.
Ou seja, como se não bastasse uma omissão histórica de “apenas” cinco séculos, fazem-se afirmações deste calibre, como se fazer “saques e razias” fosse um predicado apenas dos muçulmanos!... Ou seja, dá-se a ideia de que durante quinhentos anos de história Ibérica, a única coisa que os muçulmanos fizeram foi “saques e razias”... Tanta ignorância e preconceito chega a ser ofensiva. Curiosamente não se mencionam os “saques e razias”, a escravatura, a exploração e os massacres perpetrados pelos romanos, pelos visigodos, pelos túrdulos, ou mesmo pelos portugueses durante os “descobrimentos”, ou ainda os actos canibais praticados pelos soldados cristãos ocidentais durante as cruzadas...
Será que alguma vez estes “historiadores” pensaram como é que se terão sentido, por exemplo, os habitantes muçulmanos e mesmo os cristãos e judeus de Lisboa, após vários séculos de convivência e cultura islâmica, por passarem a ter, de um momento para o outro, a obedecer às leis, usos e costumes cristãos. Por outro lado não consta também que a tomada de Lisboa, bem como a de Évora, Santarém, Silves, Coimbra, Lamego, etc., tenham sido perpetradas pelos cristãos sem “saque nem razia”, bem pelo contrário...
Não adianta escamotear a questão, separar os “bons” para um lado e os “maus” para outro. Sabemos hoje perfeitamente que o “saque” era uma prática comum aceite instituída e mesmo forma de pagamento das próprias tropas, assim como também era comum a “razia e a escravatura”.
A própria história registou estas usanças. Reparemos mesmo o que, por exemplo, refere a este propósito Alexandre Herculano:
(...) ”Ordonho aproveitou as forças que ajuntára para fazer uma entrada nas terras dos infiéis. Passou o Douro; desceu pelo território mussulmano, que hoje chamamos Beira e Extremadura até a foz do Tejo; tomou e saqueou Lisboa, e voltou a Leão rico de despojos e captivos.” (1) Ou ainda, acerca de actos bárbaros, como este que é relatado sobre o cerco de Lisboa:
(...) Com a desesperação, começaram bandos de povo faminto a sahirem fóra dos muros, e a irem entregar-se aos christãos, renegando da própria crença para salvarem as vidas. Mas de nada valia a muitos delles esta resolução extrema: ou o fanatismo religioso, ou antes a feroz esperança de incutir terror nos sitiados com um espectaculo d’estranha cruesa, fazia com que, decepadas primeiro as mãos daqueles malaventurados, fossem repellidos de novo para os muros.” (2)
Obviamente muito haverá a dizer sobre o período árabe do território que hoje é Portugal, imenso sobre a Península Ibérica e também algo, sem dúvida, sobre o que é hoje o território cinfanense. No entanto a tarefa não se afigura fácil. A todos estes preconceitos, fobias, etnocentrismos e culturalismos aliam-se perigosamente a indiferença e ignorância, no que perfazem uma barreira, senão intransponível, pelo menos muito sólida e assim, só muito a custo se vão lentamente abrindo as brechas que permitirão aceder a todas essas riquezas ainda escondidas.
Os primeiros passos, contudo, começam finalmente agora a ser dados neste sentido, por pessoas como o arqueólogo beirão Cláudio Torres, cujo trabalho notável levado a cabo em Mértola, constituirá sem dúvida exemplo a seguir nos tempos próximos. Mas também o do arabista, poeta e escritor Adalberto Alves que tem aprofundado o estudo das letras e sobretudo dos poetas árabes da época. O seu labor tem revelado à cultura portuguesa uma imensa riqueza escondida a qual, essa sim, constituirá, o verdadeiro Tesouro da Moura Encantada de que fala o povo nas suas lendas e histórias.
Em Cinfães, embora tudo, literalmente, esteja ainda por fazer neste campo, muito há a estudar e a descobrir. As evidências são, porém, imensas.
À medida que fui estudando as origens da minha aldeia natal, para a elaboração do livro BOASSAS - UMA ALDEIA COM HISTÓRIA, fui-me deparando com uma multiplicidade de vestígios que apontavam para o período árabe. Fosse em histórias e lendas que ouvi contar, fosse na presença musical ainda sentida no cancioneiro, fosse na própria linguagem, num painel de azulejos, numa data, num vestígio de um antigo lagar, na improvável profusão de oliveiras, na sugestiva toponímia, etc.
O trabalho que agora surge mais não é que o resultado da junção de todos esses elementos e a sua evidente conclusão. O etnocentrismo continua no entanto a marcar pontos e a deturpar a visão objectiva e crítica da história, fomentando desta forma o desconhecimento, a ignorância, o desinteresse e a indiferença sobre um dos períodos mais interessantes e marcantes da história da Península Ibérica e que iria ter repercussões, não só em Portugal e Espanha, como até a nível mundial na saga dos denominados “Descobrimentos”... De facto, não será necessário um estudo muito aprofundado para esclarecer porque motivo os “descobrimentos” são perpetrados pelos países Ibéricos e não por outros países europeus.
Na realidade o conhecimento científico, havia sido aportado ao extremo oeste do continente europeu pelos árabes que haviam absorvido e desenvolvido os fundamentos da cultura greco-romana. Só se fossemos cegos não veríamos a importância fenomenal que, por exemplo, aportou para o conhecimento, para o desenvolvimento científico, tecnológico, filosófico, artístico e cultural a invenção dos algarismos e a descoberta do “zero”.
De facto o espírito do Renascimento começa na Península Ibérica e não em Itália como até hoje nos querem fazer crer.
No entanto, após oitocentos anos os preconceitos, as diferenças culturais, sociais e sobretudo religiosas, ainda não foram completamente ultrapassadas. Os primeiros passos para esta desmistificação são dados, provavelmente, por Alexandre Herculano, na sua História de Portugal, vendo no domínio árabe da península não apenas o factor guerreiro, conquistador e usurpador (?), mas também os aspectos sociais, políticos, de organização do territórios e sobretudo o fantástico impulso sociocultural aportado pela civilização árabe.
Tal como afirmaria mais tarde o grande poeta Fernando Pessoa, mais que lusitanos ou celtas o povo português é essencialmente o resultado de duas civilizações - a romana e a árabe.
No entanto, mesmo Alexandre Herculano, embora se tenha conseguido libertar, como ele próprio afirma, da sua nacionalidade, com vista a obter uma maior isenção, independência e rigor histórico-científico, não se consegue libertar, porém, da sua religião e acaba por tecer, também ele, comentários etnocentristas e mistificadores, desprovidos de qualquer rigor histórico ou científico, como quando afirma por exemplo que o facto de a península ibérica não conseguir encontrar a paz, se deve ao facto de esta ser dominada pela religião muçulmana e não pela cristã. No entanto há que ter em conta que estávamos em meados do século XIX...
Os poetas têm, sem dúvida, uma maior clarividência, por isso e porque penso que nada enalteceria melhor a cultura árabe que as palavras de um grande poeta, faço minhas as palavras de Fernando Pessoa:
“...nós, Ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações - a romana e a árabe. Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos Árabes nossos maiores. Expiemos o crime que cometemos ao expulsarmos da Península os Árabes que nos civilizaram.” (3)
Porque a esperança de um mundo melhor reside sem dúvida numa melhor relação entre os povos, por um entendimento e respeito mútuo entre as várias culturas e religiões, embora parco, com toda a humildade, espero possa ser este o meu contributo. •
(1) Herculano, A. - História de Portugal, pp. 148
(2) Herculano, A. - História de Portugal, pp. 377
(3) Pessoa, F. - Da Ibéria e do Iberismo, in Alves, A. - A herança árabe em Portugal, pp. 25
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Página 3
Palestina mon amour
Memória de um esquecimento
por: Rui Semblano
Ela insiste.
Lembra-se de um tempo em que tudo era diferente e em que não havia nomes, apenas homens e mulheres que partilhavam um espaço como tantos outros espaços, mulheres e homens. Recorda-se disto como se ainda o visse; como se a memória desse tempo não se tivesse apagado ainda dos seus olhos castanhos e profundos.
Ele insiste que não.
Não há memória desse tempo e os homens e as mulheres têm nomes e os espaços que repartem e os dividem têm nomes e sempre foi assim. E diz que é impossível ela ter testemunhado algo diverso. Não ali. Talvez em lugar algum excepto num sonho.
Existe um pó fino no ar da noite; mais fino que a neve. Cobre-os, gentilmente. Ela estende uma das mãos para diante, voltando a sua palma para cima, deixando que nela se depositem aquelas estranhas partículas. Observa-as na palma da sua mão estendida. De que serão feitas? Terão algo de humano, do que pode ser humano nos restos de homens e mulheres, de crianças? Ruína atomizada das construções de homens com nomes diversos dos homens que as destroem enquanto constroem outras com os seus nomes inscritos em pedras que não tinham nome, antes. Antes de serem tocadas pelos homens que insistem em ter nomes.
Como ele.
Mas ela não quer saber o seu nome. Para quê? A sua origem está no seu rosto, na sua fala. Não precisa saber mais. Ele, também, não sabe o nome dela; nem lho perguntou. Não precisa saber mais que o seu rosto, a sua fala e aqueles olhos que não podiam ter testemunhado o impossível. O tempo em que todos eram como eles são agora e não precisavam saber mais que os rostos e as falas uns dos outros e, ocasionalmente, os seus olhos. Ele não conhecia ninguém que tivesse visto um tempo assim. Ninguém.
Como ela.
Mas não é impossível, insiste ela, e estende a mão na direcção dele que a olha. Aquelas partículas, diz, vêm de lá; desse tempo. É a prova de ter existido, mesmo que já nada reste além disso. É um delírio, pensa ele. Um delírio que os impede de sair dali, embora ambos sintam o desperdício que significa estar ali quando deveriam estar abrigados daquele pó, inconscientes de tudo o resto para lá do abrigo.
Ele não quer dar o primeiro passo que os levaria até lá. Sente que é um passo que não deve dar sem ela; que não a pode arrastar, nesse passo. Foi ela que parou e é ela que insiste no impossível como se disso dependesse a sua existência. Talvez isso lhes recorde que há uma existência para além daquela e talvez essa recordação lhes seja insuportável. Talvez a realidade os impeça de continuar a caminhar no sonho em que não querem saber que estão. Em desespero, ele aponta as escavadoras que trabalham na distância, como a demonstrar a origem das partículas que parecem cair do céu da noite, como neve, embora nunca neve naquele lugar. Um gesto infantil que nela provoca um sorriso triste. Não.
E dá um primeiro passo. Ela.
Incapaz de dizer uma palavra, ele segue-a; é arrastado naquele passo, dado numa direcção inesperada. É tarde. Não deviam estar ali, mas ela sabe o bastante para entender que ele o permite. Os homens que guardam as escavadoras falam a sua língua e conhecem o seu nome. Deixam que passem, como se não existissem. Como se fossem fantasmas.
Para onde vão? Anda ao lado dela, mas está a segui-la, e sente que se afastam do impossível que ele afirma nunca ter ali existido, mas que ela viu com aqueles olhos castanhos que lhe parecem bastar. Ou não?
Não se vê ninguém por onde passam. As casas estão fechadas. O silêncio seria absoluto, não fossem os motores das escavadoras mais que um murmúrio ao longe. Ele percebeu, então. E parou. Ela continuou, alheia. Deve haver mais alguém que tenha visto o que ela viu. Tem de haver mais alguém.
De novo, ele insiste que sempre existiram os nomes e, acrescenta, que sempre foram sagrados. A realidade paira sobre eles, ameaçadora, por cima ou dentro da poeira que os envolve, suavemente.
Ela pára mais adiante, voltando-se para ele. Ao nascer do Sol regressarão às suas vidas, retomarão os seus nomes. Ela encontrará uma câmara de filmar, ele um estirador, mas nem um nem outro o sabem. Não o querem saber e, por isso, não deviam estar ali. Deviam estar no seu abrigo, alheios aos espaços com nomes desertos de pessoas com nomes, enlouquecidos de esquecimento.
Sagrados?
Procurando um pouco de solo limpo, ela olha em volta. Queria agarrar um bocado de terra e perguntar que nome sagrado ele lhe daria, mas tudo está coberto daquele pó cinza esbranquiçado. O pó que agora lhe dá um nome que está longe de ser sagrado. Assim, até parece que já não existe. A terra. Dos seus olhos castanhos soltam-se duas lágrimas que se tornam em dois fios escuros nas suas faces cobertas de poeira. Ele aproximou-se, colocando um braço em torno dos seus ombros, e levou-a dali, tomando o caminho de volta.
De volta ao único sítio onde fazem sentido; de volta à segurança do abrigo; de volta ao vazio protector onde ela é apenas ela e ele apenas ele, ao menos por umas horas mais.
Uma vez no seu interior, ele tomou um duche, de imediato, vestido e tudo. À medida que a água lavava a sua roupa, foi-se despindo. Aquela poeira irritava a pele, dificultava a respiração. Só, no duche, apercebeu-se como detestava aquele pó. Uma vez limpo, regressa ao quarto banhado de luar onde ela espera.
Está sentada sobre a cama, os veios escuros já sêcos no seu rosto, como duas lágrimas eternas vindas daqueles olhos brilhantes. Quer saber se ele acha que está louca. Ele nega-o, e assim é, mas não consegue aproximar-se. Já não lhe consegue tocar. É aquele pó.
Ela olha para si, afastando os braços do tronco, coberta de partículas que brilham ao luar, e depois para ele, como se lhe perguntasse o que lhe tinha feito, ou foi o que ele pensou que significava aquele olhar.
Ele senta-se a seu lado, na esperança de que se levante e se vá lavar, mas ela não se move. E ficam assim até que o Sol nasce, finalmente. Como podia ela lavar-se? Eliminar a única prova de que não tinha sonhado? A prova de ter visto o impossível? Mesmo sabendo que, assim, era ela a impossibilidade para ele e nela consumiria os últimos instantes que restavam naquele abrigo onde, para além deles próprios e do espaço, também o tempo não tinha nome.
Era ele que devia partir, não ela.
Assim fez. Sem uma palavra, retomou o seu nome mais por ter deixado a companhia dela que por ter cruzado a porta daquele miserável quarto com hora marcada para deixar de existir.
Como arquitecto, isso irá ocorrer-lhe depois, algum tempo passado, como lhe irá ocorrer, também, que ele mesmo desenhara um novo fim para aquele local. E, ao visitá-lo, já o terreno limpo pelas escavadoras, lembrar-se-á dela ao saber que a única vítima daquela demolição será uma mulher. Dir-lhe-ão o seu nome e que era actriz. Uma actriz de filmes de um país que não existe recusara sair do quarto onde se encontrava e ninguém se deu conta disso. Ou não se importaram. Como poderá saber se era ela? Envolto nestes pensamentos como na poeira que detesta e se levanta para cair sobre ele, como a neve daquela noite, não se aperceberá dos gritos ou dos disparos perto de si. Só no último instante verá um rapaz coberto de pó aproximar-se. No rosto, dois fios escuros correm-lhe dos olhos, recordando-lhe a imagem dela. Também os seus olhos eram castanhos.
Depois, tudo desaparecerá num turbilhão de luz e de partículas que se elevarão nos céus e cairão, lembrando a neve que ali nunca cai. Uma poeira cinza esbranquiçada feita de ruínas de homens e de mulheres, de crianças, de casas, de espaços com muitos nomes, todos idos. Como prova da impossível memória de um esquecimento. •
Ensaio-poema de Maio de 2003 incluído em "War in the ruins of democracy", trabalho ainda em execução.
Inspirado em "Hiroshima mon amour", realizado em 1959 por Alain Resnais, sobre um escrito de Marguerite Duras, com Emmanuelle Riva no papel de Ela e Eiji Okada no papel de Ele.
Memória de um esquecimento
por: Rui Semblano
Ela insiste.
Lembra-se de um tempo em que tudo era diferente e em que não havia nomes, apenas homens e mulheres que partilhavam um espaço como tantos outros espaços, mulheres e homens. Recorda-se disto como se ainda o visse; como se a memória desse tempo não se tivesse apagado ainda dos seus olhos castanhos e profundos.
Ele insiste que não.
Não há memória desse tempo e os homens e as mulheres têm nomes e os espaços que repartem e os dividem têm nomes e sempre foi assim. E diz que é impossível ela ter testemunhado algo diverso. Não ali. Talvez em lugar algum excepto num sonho.
Existe um pó fino no ar da noite; mais fino que a neve. Cobre-os, gentilmente. Ela estende uma das mãos para diante, voltando a sua palma para cima, deixando que nela se depositem aquelas estranhas partículas. Observa-as na palma da sua mão estendida. De que serão feitas? Terão algo de humano, do que pode ser humano nos restos de homens e mulheres, de crianças? Ruína atomizada das construções de homens com nomes diversos dos homens que as destroem enquanto constroem outras com os seus nomes inscritos em pedras que não tinham nome, antes. Antes de serem tocadas pelos homens que insistem em ter nomes.
Como ele.
Mas ela não quer saber o seu nome. Para quê? A sua origem está no seu rosto, na sua fala. Não precisa saber mais. Ele, também, não sabe o nome dela; nem lho perguntou. Não precisa saber mais que o seu rosto, a sua fala e aqueles olhos que não podiam ter testemunhado o impossível. O tempo em que todos eram como eles são agora e não precisavam saber mais que os rostos e as falas uns dos outros e, ocasionalmente, os seus olhos. Ele não conhecia ninguém que tivesse visto um tempo assim. Ninguém.
Como ela.
Mas não é impossível, insiste ela, e estende a mão na direcção dele que a olha. Aquelas partículas, diz, vêm de lá; desse tempo. É a prova de ter existido, mesmo que já nada reste além disso. É um delírio, pensa ele. Um delírio que os impede de sair dali, embora ambos sintam o desperdício que significa estar ali quando deveriam estar abrigados daquele pó, inconscientes de tudo o resto para lá do abrigo.
Ele não quer dar o primeiro passo que os levaria até lá. Sente que é um passo que não deve dar sem ela; que não a pode arrastar, nesse passo. Foi ela que parou e é ela que insiste no impossível como se disso dependesse a sua existência. Talvez isso lhes recorde que há uma existência para além daquela e talvez essa recordação lhes seja insuportável. Talvez a realidade os impeça de continuar a caminhar no sonho em que não querem saber que estão. Em desespero, ele aponta as escavadoras que trabalham na distância, como a demonstrar a origem das partículas que parecem cair do céu da noite, como neve, embora nunca neve naquele lugar. Um gesto infantil que nela provoca um sorriso triste. Não.
E dá um primeiro passo. Ela.
Incapaz de dizer uma palavra, ele segue-a; é arrastado naquele passo, dado numa direcção inesperada. É tarde. Não deviam estar ali, mas ela sabe o bastante para entender que ele o permite. Os homens que guardam as escavadoras falam a sua língua e conhecem o seu nome. Deixam que passem, como se não existissem. Como se fossem fantasmas.
Para onde vão? Anda ao lado dela, mas está a segui-la, e sente que se afastam do impossível que ele afirma nunca ter ali existido, mas que ela viu com aqueles olhos castanhos que lhe parecem bastar. Ou não?
Não se vê ninguém por onde passam. As casas estão fechadas. O silêncio seria absoluto, não fossem os motores das escavadoras mais que um murmúrio ao longe. Ele percebeu, então. E parou. Ela continuou, alheia. Deve haver mais alguém que tenha visto o que ela viu. Tem de haver mais alguém.
De novo, ele insiste que sempre existiram os nomes e, acrescenta, que sempre foram sagrados. A realidade paira sobre eles, ameaçadora, por cima ou dentro da poeira que os envolve, suavemente.
Ela pára mais adiante, voltando-se para ele. Ao nascer do Sol regressarão às suas vidas, retomarão os seus nomes. Ela encontrará uma câmara de filmar, ele um estirador, mas nem um nem outro o sabem. Não o querem saber e, por isso, não deviam estar ali. Deviam estar no seu abrigo, alheios aos espaços com nomes desertos de pessoas com nomes, enlouquecidos de esquecimento.
Sagrados?
Procurando um pouco de solo limpo, ela olha em volta. Queria agarrar um bocado de terra e perguntar que nome sagrado ele lhe daria, mas tudo está coberto daquele pó cinza esbranquiçado. O pó que agora lhe dá um nome que está longe de ser sagrado. Assim, até parece que já não existe. A terra. Dos seus olhos castanhos soltam-se duas lágrimas que se tornam em dois fios escuros nas suas faces cobertas de poeira. Ele aproximou-se, colocando um braço em torno dos seus ombros, e levou-a dali, tomando o caminho de volta.
De volta ao único sítio onde fazem sentido; de volta à segurança do abrigo; de volta ao vazio protector onde ela é apenas ela e ele apenas ele, ao menos por umas horas mais.
Uma vez no seu interior, ele tomou um duche, de imediato, vestido e tudo. À medida que a água lavava a sua roupa, foi-se despindo. Aquela poeira irritava a pele, dificultava a respiração. Só, no duche, apercebeu-se como detestava aquele pó. Uma vez limpo, regressa ao quarto banhado de luar onde ela espera.
Está sentada sobre a cama, os veios escuros já sêcos no seu rosto, como duas lágrimas eternas vindas daqueles olhos brilhantes. Quer saber se ele acha que está louca. Ele nega-o, e assim é, mas não consegue aproximar-se. Já não lhe consegue tocar. É aquele pó.
Ela olha para si, afastando os braços do tronco, coberta de partículas que brilham ao luar, e depois para ele, como se lhe perguntasse o que lhe tinha feito, ou foi o que ele pensou que significava aquele olhar.
Ele senta-se a seu lado, na esperança de que se levante e se vá lavar, mas ela não se move. E ficam assim até que o Sol nasce, finalmente. Como podia ela lavar-se? Eliminar a única prova de que não tinha sonhado? A prova de ter visto o impossível? Mesmo sabendo que, assim, era ela a impossibilidade para ele e nela consumiria os últimos instantes que restavam naquele abrigo onde, para além deles próprios e do espaço, também o tempo não tinha nome.
Era ele que devia partir, não ela.
Assim fez. Sem uma palavra, retomou o seu nome mais por ter deixado a companhia dela que por ter cruzado a porta daquele miserável quarto com hora marcada para deixar de existir.
Como arquitecto, isso irá ocorrer-lhe depois, algum tempo passado, como lhe irá ocorrer, também, que ele mesmo desenhara um novo fim para aquele local. E, ao visitá-lo, já o terreno limpo pelas escavadoras, lembrar-se-á dela ao saber que a única vítima daquela demolição será uma mulher. Dir-lhe-ão o seu nome e que era actriz. Uma actriz de filmes de um país que não existe recusara sair do quarto onde se encontrava e ninguém se deu conta disso. Ou não se importaram. Como poderá saber se era ela? Envolto nestes pensamentos como na poeira que detesta e se levanta para cair sobre ele, como a neve daquela noite, não se aperceberá dos gritos ou dos disparos perto de si. Só no último instante verá um rapaz coberto de pó aproximar-se. No rosto, dois fios escuros correm-lhe dos olhos, recordando-lhe a imagem dela. Também os seus olhos eram castanhos.
Depois, tudo desaparecerá num turbilhão de luz e de partículas que se elevarão nos céus e cairão, lembrando a neve que ali nunca cai. Uma poeira cinza esbranquiçada feita de ruínas de homens e de mulheres, de crianças, de casas, de espaços com muitos nomes, todos idos. Como prova da impossível memória de um esquecimento. •
Ensaio-poema de Maio de 2003 incluído em "War in the ruins of democracy", trabalho ainda em execução.
Inspirado em "Hiroshima mon amour", realizado em 1959 por Alain Resnais, sobre um escrito de Marguerite Duras, com Emmanuelle Riva no papel de Ela e Eiji Okada no papel de Ele.
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Página 4
Mahmoud Darwish
Biografia e bibliografia sintéticas
Nascido em 1942, em Barwa, perto de Akko (Acre), na Palestina. A Família, de origem muçulmana sunita, é forçada a abandonar Barwa, após a área ser anexada ao novo Estado de Israel, fixando-se depois em Dayru al-Assad. Em 1970, após um ano de estudos universitários em Moscovo, Darwish decide não regressar a Israel e instala-se no Cairo, mudando-se para Beirute, em 1972, onde começa a trabalhar para a Organização de Libertação da Palestina (OLP) como editor do Shu'un Filistiniyya, um órgão informativo impresso de periodicidade mensal, dedicado a assuntos palestinianos. Em 1975 é nomeado director do Centro de Pesquisa da OLP. Na sequência da expulsão da OLP de Beirute, após a invasão israelita do Líbano, instala-se em Chipre. Recebe o Prémio Ibn Sina nesse ano, assim denominado em honra do filósofo e cientista árabe (981-1037), conhecido como Avicenas em Portugal.
Recebeu o Prémio Internacional de Poesia Lotus e o Prémio Lenin da Paz (1983). Em 1987 é eleito para o Comité Executivo da OLP, onde já era adjunto de confiança de Yasser Arafat. Tido como um moderado em questões políticas, é autor do texto da Declaração de Independência da Palestina (assinada no 19º Encontro do PNC em Argél, a 15 de Novembro de 1988). Em 1993, em oposição aos Acordos de Oslo, demite-se do cargo ocupado na OLP. Regressa à Palestina em 1996, fixando-se em Ramallah. Em 2001 recebe o Prémio Lannan de Liberdade Cultural.
“Bird without wings” (1961), "Lover from Palestine" (1964), "Olive leaves" (1964), "The Music of Human Flesh" (Londres, Heinemann, 1980), "Why Did You Leave the Horse Alone?" (1994). •
Biografia e bibliografia sintéticas
Nascido em 1942, em Barwa, perto de Akko (Acre), na Palestina. A Família, de origem muçulmana sunita, é forçada a abandonar Barwa, após a área ser anexada ao novo Estado de Israel, fixando-se depois em Dayru al-Assad. Em 1970, após um ano de estudos universitários em Moscovo, Darwish decide não regressar a Israel e instala-se no Cairo, mudando-se para Beirute, em 1972, onde começa a trabalhar para a Organização de Libertação da Palestina (OLP) como editor do Shu'un Filistiniyya, um órgão informativo impresso de periodicidade mensal, dedicado a assuntos palestinianos. Em 1975 é nomeado director do Centro de Pesquisa da OLP. Na sequência da expulsão da OLP de Beirute, após a invasão israelita do Líbano, instala-se em Chipre. Recebe o Prémio Ibn Sina nesse ano, assim denominado em honra do filósofo e cientista árabe (981-1037), conhecido como Avicenas em Portugal.
Recebeu o Prémio Internacional de Poesia Lotus e o Prémio Lenin da Paz (1983). Em 1987 é eleito para o Comité Executivo da OLP, onde já era adjunto de confiança de Yasser Arafat. Tido como um moderado em questões políticas, é autor do texto da Declaração de Independência da Palestina (assinada no 19º Encontro do PNC em Argél, a 15 de Novembro de 1988). Em 1993, em oposição aos Acordos de Oslo, demite-se do cargo ocupado na OLP. Regressa à Palestina em 1996, fixando-se em Ramallah. Em 2001 recebe o Prémio Lannan de Liberdade Cultural.
“Bird without wings” (1961), "Lover from Palestine" (1964), "Olive leaves" (1964), "The Music of Human Flesh" (Londres, Heinemann, 1980), "Why Did You Leave the Horse Alone?" (1994). •
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Página 4
Um poema,
por: Mahmoud Darwish
um desenho
por: António Péssimo
Nesta terra há coisas que merecem viver:
a hesitação de Abril, o cheiro do pão ao amanhecer, as opiniões de uma mulher acerca dos homens, os escritos de Ésquilo, o despertar do amor, a erva sobre as pedras, as mães erguidas sobre um fio de flauta e o medo que a lembrança inspira aos conquistadores.
Nesta terra há coisas que merecem viver:
o fim de Setembro, uma mulher que entra nos quarenta, com todo o seu vigor, a hora do sol na prisão, as nuvens que imitam um bando de criaturas, as aclamações de um povo pelos que caminham, sorridentes, para a morte e o medo que as canções inspiram aos tiranos.
Nesta terra há coisas que merecem viver:
nesta terra está a dona da terra, mãe dos prelúdios e dos epílogos. Chamavam-lhe Palestina. Chama-se ainda Palestina. Minha Dama, eu mereço, mereço viver, porque tu és a minha Dama.
Nota do Redactor (Arquivo):
Lamentavelmente, este formato de arquivo não suporta imagens.
A ilustrar o poema de Mahmmoud Darwish foi publicado um original de António Péssimo.
Curiosamente, não fora este desenho um original feito com este propósito, teria sido escolhido um trabalho de José Rodrigues, que viria a integrar a obra "O Sentimento Trágico da Vida" (ASA).
por: Mahmoud Darwish
um desenho
por: António Péssimo
Nesta terra há coisas que merecem viver:
a hesitação de Abril, o cheiro do pão ao amanhecer, as opiniões de uma mulher acerca dos homens, os escritos de Ésquilo, o despertar do amor, a erva sobre as pedras, as mães erguidas sobre um fio de flauta e o medo que a lembrança inspira aos conquistadores.
Nesta terra há coisas que merecem viver:
o fim de Setembro, uma mulher que entra nos quarenta, com todo o seu vigor, a hora do sol na prisão, as nuvens que imitam um bando de criaturas, as aclamações de um povo pelos que caminham, sorridentes, para a morte e o medo que as canções inspiram aos tiranos.
Nesta terra há coisas que merecem viver:
nesta terra está a dona da terra, mãe dos prelúdios e dos epílogos. Chamavam-lhe Palestina. Chama-se ainda Palestina. Minha Dama, eu mereço, mereço viver, porque tu és a minha Dama.
Nota do Redactor (Arquivo):
Lamentavelmente, este formato de arquivo não suporta imagens.
A ilustrar o poema de Mahmmoud Darwish foi publicado um original de António Péssimo.
Curiosamente, não fora este desenho um original feito com este propósito, teria sido escolhido um trabalho de José Rodrigues, que viria a integrar a obra "O Sentimento Trágico da Vida" (ASA).
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Página 4
Pormenor
Um dia na vida de Mahmoud Darwish
Fonte: El Pais - 14/04/2002
O exército israelita atacou ontem (13/04/02) o Centro Cultural Jalil Sakatini, cuja direcção pertence ao poeta nacionalista palestino Mahmoud Darwish. O edifício foi danificado por cargas explosivas e saqueado pelos militares, numa operação destinada a fazer desaparecer um dos símbolos culturais mais importantes da identidade palestiniana, da mesma forma que meses atrás foram destruídos outros símbolos da autonomia, como a residência do presidente Arafat, em Gaza, o edifício da televisão palestina ou a sede da Casa do Oriente, em Jerusalém.
O Centro Cultural Jalil Sakatini, situado na periferia de Ramallah, ficou seriamente danificado pela explosão de seis cargas de dinamite. Previamente, os soldados haviam penetrado no prédio para o saquear, levando arquivos, documentos e obras de arte. Foi, também, saqueado o gabinete do director do centro, o poeta Darwish.
O Centro Cultural Sakatini, inaugurado em 1996, ocupava um nobre edifício de pedra de estilo árabe que fora construído em 1927 por uma das famílias aristocráticas de Ramallah, a de Jalil Salem Salah, da qual um membro notável foi alcaide da cidade durante o mandato jordano. Em 1995, a Autoridade Palestiniana comprou o imóvel, com a ajuda do Governo japonês, reabilitou-o e converteu-o num centro de animação cultural permanente e sede da revista literária Al Karmel, dirigida por Darwish.
A operação dos soldados israelitas continuou horas mais tarde com a sua entrada na própria casa do poeta, que se encontra desde há várias semanas no estrangeiro.
Com esta actuação, o Governo de Israel quis dar uma “lição” a Darwish, considerado pelos palestinianos como o poeta nacional por antonomásia e apelidado por muitos como o Poeta da Intifada. Em Abril de 1988, quatro meses depois de iniciada a primeira Intifada, o Governo de Isaac Shamir iniciou uma impiedosa ofensiva contra este intelectual por motivo do seu poema Passando entre as palavras passageiras, que, na opinião do então primeiro ministro israelita, era “a expressão exacta dos objectivos do bando de assassinos organizados sob o tecto da OLP”. Darwish pedia, com este poema, a saída dos ocupantes da sua terra:
“é tempo de partirdes / de vos fixardes onde vos aprouver / mas não vos fixeis no meio de nós”. •
Um dia na vida de Mahmoud Darwish
Fonte: El Pais - 14/04/2002
O exército israelita atacou ontem (13/04/02) o Centro Cultural Jalil Sakatini, cuja direcção pertence ao poeta nacionalista palestino Mahmoud Darwish. O edifício foi danificado por cargas explosivas e saqueado pelos militares, numa operação destinada a fazer desaparecer um dos símbolos culturais mais importantes da identidade palestiniana, da mesma forma que meses atrás foram destruídos outros símbolos da autonomia, como a residência do presidente Arafat, em Gaza, o edifício da televisão palestina ou a sede da Casa do Oriente, em Jerusalém.
O Centro Cultural Jalil Sakatini, situado na periferia de Ramallah, ficou seriamente danificado pela explosão de seis cargas de dinamite. Previamente, os soldados haviam penetrado no prédio para o saquear, levando arquivos, documentos e obras de arte. Foi, também, saqueado o gabinete do director do centro, o poeta Darwish.
O Centro Cultural Sakatini, inaugurado em 1996, ocupava um nobre edifício de pedra de estilo árabe que fora construído em 1927 por uma das famílias aristocráticas de Ramallah, a de Jalil Salem Salah, da qual um membro notável foi alcaide da cidade durante o mandato jordano. Em 1995, a Autoridade Palestiniana comprou o imóvel, com a ajuda do Governo japonês, reabilitou-o e converteu-o num centro de animação cultural permanente e sede da revista literária Al Karmel, dirigida por Darwish.
A operação dos soldados israelitas continuou horas mais tarde com a sua entrada na própria casa do poeta, que se encontra desde há várias semanas no estrangeiro.
Com esta actuação, o Governo de Israel quis dar uma “lição” a Darwish, considerado pelos palestinianos como o poeta nacional por antonomásia e apelidado por muitos como o Poeta da Intifada. Em Abril de 1988, quatro meses depois de iniciada a primeira Intifada, o Governo de Isaac Shamir iniciou uma impiedosa ofensiva contra este intelectual por motivo do seu poema Passando entre as palavras passageiras, que, na opinião do então primeiro ministro israelita, era “a expressão exacta dos objectivos do bando de assassinos organizados sob o tecto da OLP”. Darwish pedia, com este poema, a saída dos ocupantes da sua terra:
“é tempo de partirdes / de vos fixardes onde vos aprouver / mas não vos fixeis no meio de nós”. •
Panorama Zero - Junho 2003 - Palestina Ficha Técnica
PANORAMA
um miradouro das artes e das letras
panorama.al@clix.pt
CINFÃES: Boassas - apartado 71 4690 Cinfães
Telef. e Fax: 255.561.337
Telef. Direcção 914.727.539 Telef. Redacção 965.629.042
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Suplemento do semanário Miradouro - SRIP nº 102545
Inst. Comunicação Social nº 102545
Direcção: M. Cerveira Pinto Edição: Manuel da Cerveira Pinto Redacção e Direcção de Arte: Rui Semblano Pré-Impressão: OBM, Edição e Impressão Digital - Vila Nova de Gaia Impressão: CONVENTURISPRESS Artes Gráficas - Viseu Colaboradores: José da Cruz Santos
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